No novo livro de José Rodrigues dos Santos procura-se uma explicação científica para as experiências de quase-morte. Na vida real, a intriga permanece, com relatos coincidentes: luz ao fundo do túnel, bem estar, leveza. A presença de Deus ou uma reacção fisiológica?
Nas fotos do álbum cuidadosamente legendado, Sandra Caroço, 46 anos, aparece sorridente e luminosa, deitada na maca, ligada ao soro. Ninguém diria que, momentos antes, a técnica de dermopigmentação tinha estado às portas da morte. No último dia de férias na Baía, Brasil, Sandra enfrentou uma pratada de caranguejo, mais os devidos molhos e acompanhamentos. Acabado o repasto, foi sentindo o corpo a inchar, a temperatura a subir, um desconforto geral a instalar-se. Quando chegou ao pequeno centro de saúde, praticamente não conseguia respirar. E enquanto esperava que o único médico de serviço terminasse um parto, caiu para o lado, inanimada. Voltou à vida, com uma injecção de adrenalina, numa cena a la Pulp Fiction, e encontrou a amiga e companheira de viagem em pranto, a medir as palavras com que iria contar à mãe de Sandra que a filha tinha morrido.
"Voltei feliz porque estava num lugar muito agradável", justifica, 15 anos depois do episódio. A descrição que faz do que sentiu enquanto esteve inanimada é comum a outras experiências ditas de quase-morte: uma sensação de bem-estar, um ambiente calmo e sereno, uma luz, a visão de uns vultos.
Apesar de controverso, o tema tem sido objecto de estudo e há já algumas publicações científicas que apresentam dados sobre o assunto. Num artigo publicado na revista International Emergency Nursing estima-se que 4 a 9 por cento das pessoas já terá vivido uma experiência do género, uma percentagem que sobe até aos 23% quando se trata de doentes em estado terminal. Mas o mesmo também pode acontecer a pessoas saudáveis, quando estão em perigo. "Em situações de saúde muito graves, sabe-se que são produzidas no organismo substâncias, as endorfinas, que são opióides, como a morfina, e que quando se libertam dão uma enorme sensação de bem-estar. Está descrito que nas situações de quase-morte, ou mesmo de morte, estas substâncias podem ser libertadas em grande quantidade", explica Diogo Telles Correia, psiquiatra no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e Professor da Faculdade de Medicina.
Por conta das endorfinas
No mais recente estudo publicado pela Universidade de Southhampton, o grupo do investigador Sam Parnia, que se dedica há anos ao assunto, conclui-se que uma pessoa se pode manter consciente até três minutos depois de o coração parar de bater, apesar de o cérebro normalmente se desligar 20 a 30 segundos depois da paragem cardíaca. Parnia avança ainda que as sensações associadas à quase-morte ocorrerão enquanto se está a perder ou a ganhar consciência. E que para elas há duas explicações possíveis: uma resposta fisiológica à percepção de que a vida está em perigo, que surge por acção das endorfinas, ou uma alucinação perante a iminência da morte.
Para Tiago Reis Marques, psiquiatra e professor no Instituto de Psiquiatria do Kings College, em Londres, há sempre uma justificação fisiológica. "Todas as experiências que fogem ao nosso controlo assustam e levam-nos a procurar interpretações, mas há uma explicação científica, lógica, para cada um destes eventos. Mesmo do ponto de vista evolutivo, faz sentido que ocorra uma sensação de tranquilidade, pois permite que as pessoas mantenham a calma e tentem salvar-se de uma situação fatal, como num afogamento, por exemplo."
A visão de túnel, que também costuma ser descrita nestas experiências, pode ser explicada pela deficiente oxigenação do córtex visual, a zona do cérebro responsável pelo processamento da visão, que provoca um estreitamento do campo visual. "Acontece também, por exemplo, com os pilotos que voam a 4G ou 5G, onde a força gravítica impede a oxigenação adequada do cérebro", explica o investigador. "Já a sensação de estar fora do corpo surge em doenças psiquiátricas, e já foi replicada em laboratório pela estimulação cerebral da região temporo-parietal direita [no cérebro]."
Memória implantada
O conjunto de sensações é tão agradável que há quem procure induzi-la, por hipnose. Mário Simões, psiquiatra e professor de Ciências da Consciência, organiza workshops em que induz estes estados. "Criamos um cenário pacífico, de repouso. E as pessoas até ficam aborrecidas por voltar de lá", conta. Para o psiquiatra, através da hipnose não se faz mais do que ir buscar uma memória que todos nós temos implantada no cérebro. A sua tese é a de que "nascemos com um programa que nos permite dar um sentido a tudo isto, um sentimento de que a morte não é um fim. ?É uma memória atávica, que nasce connosco e é transversal a todos os povos, crenças e idades. Vem ao de cima quando a morte está iminente." Mas, segundo o próprio, é preciso acreditar para que ela surja.
"Só quem busca qualquer coisa é que consegue por esta memória em marcha. Nas pessoas que não acreditam que haja algo mais do que a matéria, nunca vem ao de cima." Depois de uma experiência de quase-morte, ninguém fica igual, relata Mário Simões. ?"A pessoa vem transformada, tem um sentimento muito forte de contacto com o divino, como se sentisse o poder da cura."
Na vida do arquitecto José Trindade Chagas, 67 anos, há um antes e um depois do acidente que o deixou em coma. Uma queda numas obras mal sinalizadas, na zona do Cais do Sodré, em Lisboa, provocou-lhe uma fractura crânio-encefálica, várias vértebras partidas, e um estado de inconsciência que se prolongou por dias. Do coma, recorda uma escuridão cerrada, um frio intenso e uma solidão sem fim. "Morrer é qualquer coisa de muito penoso". No limiar da vida, José Trindade Chagas teve a percepção de que ia morrer e decidiu resistir. 'Quero viver', pensei. E, a partir daí, deixei de ver escuro e passei a ver umas sombras e umas manchas brancas. Pelo meio, ainda me apareceu um pastor solitário", relata.
"Sabe-se que, em múltiplas situações de doença orgânica, como infecções graves, doenças cardiológicas graves, estados pós cirúrgicos, etc., os pacientes podem apresentar, como consequência de múltiplas alterações que ocorrem no organismo, um quadro de perda de consciência, com desorientação no tempo e espaço, e desenvolvimento de delírios (ideias irracionais, não compreensíveis), que podem estar relacionadas com actividades que costumavam desenvolver, por exemplo", explica Diogo Telles Correia.
José Trindade Chagas dispensa as explicações. A sua recuperação demorou dois anos. Mas o acordar do coma foi o ponto de partida para uma nova vida. Concluiu a sua tese de doutoramento, teve uma filha e passou a dar outro valor aos aspectos mais simples do dia a dia. "Hoje tenho a consciência de como é bom estar vivo. Renasci." A sensação de que terá havido uma força divina a trazê-lo de volta fê-lo reaproximar-se da igreja e até a querer falar da sua vivência, para inspirar outros a apreciarem o que têm.
Em Sandra Caroço, a experiência de quase-morte também deixou uma forte recordação. Já lá vão 15 anos, mas a sensação permanece, forte e prazerosa. Uma reserva de um lugar feliz, a que recorre sempre que precisa.
Fonte: VISÃO
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